sexta-feira, 29 de maio de 2020

Conexão

Em que se visualize as energias de uma pessoa / e com os dedos em garras as puxe / e o mesmo se faça a outrem / as mãos unidas / seguras / o que se fizer à uma / a outra sentirá 

 

 

 

2020/05/22 
Fred

200 anos

 

seu tunico ladera chegou aos 106 anos. uma biografia rechonchuda de sobrevivência, limão puro e tv no horário da lua. o jovem marca-passo misturado ao aniversário lhe trouxe uma súbita certeza de mais potentes e ágeis 100 anos. seu neto, tunico neto, recém ascendida sua consciência à nuvem de dados, ilumina com seu corpo holográfico as rugas do avô, e fazendo dupla com a lua pinta de azul e branco a varanda escura, escuta uma estória de fuga de uma faminta onça preta. Deus ouve comovido a súplica dos lábios dos fantasmas de dona mônica e josualdo, esposa e filho, para a manutenção dos 200 anos sonhados. tunico neto, mãe e filho se veem e compreendem o milagre de se verem. Deus aponta para o final da estória de tunico ladera, que não sabe que conta pra quatro entidades, o momento exato em que a onça preta é atacada e morta por uma esquadra de tucanos “abençoados”. todos riram e assistiram seu tunico ladera suportar o riso com as mãos na barriga. sem garantias ou promessas longevas, a varanda se encheu de estórias e tunicadas, as damas-da-noite perfumaram e sumiram com todas as rugas, uma família de tucanos veio dar suas bênçãos..., mas nenhum confirmou coisa alguma. 

 

 

 

 

2020/05/22 
Fred

Organelas

 

Veja / existem várias bolhas / as pessoas saem de umas / e vão para outras / se dividem entre elas / porque comportam-se de diversas formas / coabitam bolhas / porque podem haver intersecções / entre bolhas / Por isso tantos bots / para atender todos os públicos / o xingamento certo / para o comportamento específico / num ponto exato do cérebro límbico / do perfil escolhido / É bonito o gráfico / registra os movimentos de coexistência / celulares entre as biobolhas / os bots viróticos / adoecendo as organelas / a dissolução das biobolhas / E como cada um sai / duma bolha cada vez mais / editado 

 

 

 

 

2020/05/26 
Fred

Vidro de conserva

 

Um homem curtido num grande vidro / De conserva, uma iguaria – imerso / Mergulhado em tons oliva / Entre alhos e cebolas pequenas / Pimentas e espesso azeite / Alecrim e irracionalidade / De estar ali sendo curtido / Em conserva, dentro do grande vidro / Prende a respiração / Arregala os olhos quando / Fechá-los era o objetivo / E dormi-los, porque é noite / E não entende por que / Todos os dias tenta dormir ali / Imerso no azeite turvo / Tem o desencanto de sair de dentro / Engordurado, apressado e curvo / Para tomar um bom banho / Quente pra desengordurar e tomar / Uma xícara de chafé / Comer bolacha e ir trabalhar / Esse homem com a respiração presa / Dentro do vidro de conserva / Receita brasileira / Sairá dali pronto para não acreditar / Em ninguém e nenhuma esperança / Que não seja um prato de comida / Sequer saberá da angústia / Que compõe seus nervos e vísceras / Por que agride a mulher e os filhos / Sequer saberá sobre o que sente / Por que a raiva quando queria chorar / Sequer saberá que dorme em conserva / Sequer entende a oleosidade toda / Sequer entende que é um ingrediente / Sequer entende que é comida / Que poderá terminar os seus dias / Dentro d’estômagos, de várias barrigas / Que fazem mais de três / Refeições ao dia / Mas uma hora / Uma hora paralela / Deixará de ser sabujo jogará / Pra longe a tampa vai bicar / O vidro até quebrar / Queporr'éessa, vai se virar / E não desperdiçará nada / Vai lavar tudo o que ajudava / A lhe temperar / E, como nunca, / É possível entrevê-lo, ígneo / Comerá  

" 

 

 

 

2020/05/22 
Fred

uma consulta médica

 

O estetoscópio capta um coração quieto, escondido por detrás das costelas, pronto pra bater muito, mas premeditado e furtivo. O médico diz que é calma, não há mal algum, mas acha estranho, deve guardar seus receios para mais tarde dividir com a esposa. Não tem perguntas para o cardiologista. Cobre-se com a camiseta e a blusa de lã musgo. Sua lacraia de estimação cochila rente ao couro cabeludo, encoberta pela floresta de cabelos; curte em seus ferrões bucais uma peçonha envelhecida, feita para parar corações, numa saudade sonolenta de sair dali; sabe ficar quieta e não se mexe diante do doutor. Paga a consulta e sai dali, com as bochechas arroxeadas. A noite pousa fria, displicente, deixa os ventos e as garoas tocarem o terror. Quantos - ! - moradores de rua buscando criar suas armaduras de pano e papelão. Há fogueiras, postes e faróis de carro, perdendo para o enxame de telas de telefones celulares. Seu coração se compromete e bate o mínimo necessário. A lacraia se encolhe onde o cabelo é mais farto. Um cobertor manchado de terra e fuligem de ônibus cobre uma mulher indefinível e um cão miscigenado. Não se recorda quando se aposentou..., pelo que se lembra falta vinte anos para os sessenta. Estranho. Talvez o hábito de nunca ter lido um livro de história tenha lhe embotado as regiões da memória. Resolve enlaçar uma saudade indefinida, quase estrangeira. Surge uma borboleta. Solitária e acesa de seus próprios tons de laranja borboleta. Ela tem um ritmo destoante – outra dimensão – carrega o olhar para dentro do próprio observador, que se perde em suas memórias de criança. A borboleta deve ter uns dez cavalos de potência estética. O ônibus necessário chega ao Terminal Tumbeiros. O motorista busca um café para aproveitar a parada ao máximo, sua alegria tem sorriso e as mesmas cores da borboleta. Ele deve tê-la observado. Bem, a lacraia coordena suas pernas infinitas e raspa o couro cabeludo: está com fome. Melhor comprar um pacote de salgadinhos de milho – é o que dá pra comprar. A borboleta não sai da cabeça. É bem  provável que participará do sonho próximo, ainda mais bela, terrível e potente, na cama. 

 

 

 

 

2020/05/26 
Fred

Algumas miscigenadas

Quando os animais e os vegetais se miscigenarem / Na contramão / Gato preto cruza meu caminho / Agora tenho uma sorte de limão / De quase cair tropeçando / Livrado de morrer gripado / Uma senhora acometida / De couro vegetal nos ombros / Não sabe dizer se é couro / De maçaranduba ou pau-ferro ou carvalho / Come enquanto passeia / Uma maçã com olhos de gato / Porque come fruta / E também come carne / E tem fungos na dieta / Porque foda-se tudo / Eu vou comer o qu'eu quiser com alho / Na rinha de berinjelas / As que têm mais caninos / Vencem / As de bico de galo / Escamas imbricadas, inclinadas e alertas / Como as da víbora-das-árvores / Ou atheris squamigera / Seriam menos estranhas / Se o couro duma melancia não cobrissem / Gorda e exagerada / Apostem nas berinjelas / De caninos lupinos / Mordem primeiro / E o antepasto feito com o derrotado / Sempre vem acompanhado / De pão sovado 

 

 

 

2020/05/09 
Fred Vieira

Megalobagre

Camisetas, estórias, jogos, filmes e fotos do megalobagre 

 

Não é difícil que criem  

O exemplar de megalobagre 

Ossos e carne  

Toneladas 

Um navio para contorná-lo 

Vê-lo sentir-se deslocado 

Para que em sua  

Jornada do coadjuvante 

Seja comido assado 

E se alimente a cidade 

Pois estudam primeiro 

Depois o bicho é entretenimento 

E estudam 

Depois o bicho é arte  

E glória  

E estudam que o bicho, talvez 

Não devesse existir 

Já programado: o bicho morre 

Os tendões viram cabos 

Os ossos um diorama 

A carne se torna comida  

E vira humana 

 

 

Passado Presente Futuro 

 

A casa do megalobagre é o Rio Amazonas  

Das águas para o museu, hotel e parque 

Em suas bordas 

 

 

O Hotel MB 

 

Ganhamos alguns dias no parque-hotel-museu MB 

Para vermos em alguns minutos 

O diorama do megalobagre 

Resgatado em filmes e hologramas 

Algoritmos incorpóreos pairam como libélulas  

Quase invisíveis  

Para nos lerem as emoções  

E surpresas 

Ao encararmos a MAGNITUDE 

Do esqueleto do megalobagre 

E quão belas são suas cópias  

Em pelúcia ou plástico ou emborrachada 

 

 

A comunidade 

 

A maioria dos espíritos que moram no entorno 

Da história do megalobagre 

Ou mudou seus corpos dali 

Ou viu o peixe e o arroz encarecer 

E trabalha para o museu-hotel-parque  

Ou auxiliam o espírito do megalobagre 

A parar de observar seus ossos no diorama 

Ou se desvencilhar 

Dos pensamentos dos turistas 

Que o conjuram desde 

O apagar das câmeras  

Da comoção de seu velório  

 

 

Os sentimentos 

 

Tenho afeto por estes pequenos  

Apesar dos breves e pequenos  

Sóis piscantes  

Que apontam para mim 

Enquanto o sol grande não pousa 

Nas águas  

Me cuidam e me tocam 

Mas queria conhecer alguém  

Parecida comigo 

 

 

O presente 

 

O megalobagre não é mais  

Megalobagre 

Aguarda sua vez 

De ser humano  

Quer visitar seu antigo esqueleto 

Tentar lembrar de si e aprender 

A estar em todos os lados 

Da história  

 

 

 

2020/04/10 
Fred Vieira